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Por que um livro de processo penal?

Introdução do livro Teoria do Processo Penal Brasileiro - v. 1, de Ana Cláudia Pinho, Antonio Pedro Melchior e Rubens Casara, recém-lançado pela Da Vinci Jur.


Vive-se em uma quadra histórica na qual as pessoas parecem optar por diminuir a própria capacidade de compreensão dos fenômenos, da história e das condições materiais que levam à dominação e à exploração da maioria da população por uma minoria que detém o poder político e/ou econômico. O pensamento reflexivo, a possibilidade de formular diagnósticos adequados da realidade e direcioná-los em um sentido emancipatório, tornou-se um inimigo. Investe-se, cada vez mais, na diminuição das exigências para o convencimento. A “verdade”, a “liberdade”, o “belo” e o “bem”, por exemplo, foram ressignificados, perdendo importância, e acabaram reduzidos no imaginário popular a valores negociáveis, quando não descartáveis. A crença na prisão, por sua vez, une católicos, protestantes, neopentecostais, muçulmanos, judeus e até alguns ateus.

                 A opção pelo cômodo em detrimento da verdade revela-se útil à finalidade de acumulação tendencialmente ilimitada. A busca pelo lucro ou por vantagens pessoais não necessita do valor “verdade”. Ao contrário, a necessidade de atuar pautado ou pautada pela verdade frequentemente representa um obstáculo ao desejo de lucro (ou à punição de um indivíduo). A confiança, que sempre funcionou como condição de possibilidade para a vida social e a redução dos conflitos morais, passou a exigir requisitos cada vez mais precários. Confia-se, por vezes, no “absurdo”. Em meio a uma espécie de “vale-tudo” argumentativo, no qual a opinião despida de reflexão pode ter o mesmo valor que o conhecimento embasado em dados concretos ou produzido a partir de pesquisas, cada vez mais pessoas passaram a acreditar no que deveria ser ilógico, contraditório ou equivocado à luz do conhecimento e dos saberes até então produzidos.

                 Investe-se ainda mais na alienação das pessoas, o que as faz, muitas vezes, defender posições contrárias aos seus próprios interesses. Por evidente, essa produção de “desconhecimentos”, de “conhecimentos parciais” e de “equívocos” conta com a participação dos sujeitos a ela submetidos. Estes sujeitos se submetem, mas são também agentes ativos do mesmo processo. É reconfortante “não saber” e “não se responsabilizar” pelo que acontece, sempre que o ocorrido se insere na esfera do “indizível” ou do “profundamente desagradável”. Vale lembrar das pessoas que, em meio ao projeto nazista, optaram por não ter conhecimento do que acontecia, não obstante judeus e judias não tenham parado de ser caçados/caçadas e de desaparecer ao longo dos anos de hegemonia da racionalidade nazista, ou nos brasileiros que ignoram que existem pessoas em jaulas incompatíveis com a dignidade da pessoa humana. A “ignorância é uma benção”, enuncia um ditado popular. Como percebeu Theodor W. Adorno, “é razoável supor que exista uma proporção entre o gesto de não-ter-sabido-de-nada e uma indiferença ao menos embrutecida e amedrontada”.[1] As pessoas preferem não saber o que acontece no sistema penal, nem mesmo os estudantes de processo penal. Há uma questão ética importante que cerca essa ignorância: não buscar o conhecimento capaz de melhorar a vida da maioria das pessoas é uma violação ética e uma omissão política.

                 Com a hegemonia do neoliberalismo, a razão passa a identificar-se com a realização de cálculos de interesse que visam, exclusivamente, ao lucro ou à obtenção de vantagens pessoais. O princípio do interesse, fundamental à compreensão do Homo economicus (uma espécie de ator voltado à maximização dos ganhos), que já funcionava como o núcleo da ideologia liberal, tornou-se o vetor interpretativo e o mandamento nuclear do sistema forjado a partir da racionalidade neoliberal. Com a hegemonia da lógica dos cálculos de interesse, após a clivagem produzida nas mentalidades, “nenhum princípio racional efetivo de coesão social subsiste”,[2] salvo se for mantido pelo terror ou por técnicas de psicopoder (convencimento à autoexploração e à subordinação). Há, por evidente, uma contradição interna entre o próprio interesse e a ideia de razão. As ideias de “justiça”, de “igualdade”, de “democracia” e de “felicidade”, por exemplo, que seriam fundadas na razão objetiva, cedem diante da busca por lucro ou por vantagens pessoais. Em outras palavras, o “particular” (lucro/vantagem) impõe-se ao “universal”. Pode-se, então, falar em perda da autonomia da razão em função do fenômeno neoliberal, entendido como uma racionalidade que se tornou hegemônica.

                 A razão torna-se apenas mais um instrumento a ser usado ou a ser descartado na busca por lucro ou por vantagens. Os conceitos passam a ser “dispositivos otimizados”,[3] e o próprio pensamento parece reduzido a um processo industrial e acrítico. As “ideias” tornam-se automáticas e quanto mais instrumentalizadas, “menos se vê nelas pensamentos com um sentido próprio”.[4] Há uma espécie de mecanização do ato de pensar. Com isso, “a diferença entre pensar e agir é considerada nula”, bem como “o sentido é suplantado pela função ou pelo efeito no mundo das coisas”.[5] 

                 O Poder Judiciário, e principalmente o Supremo Tribunal Federal, que deveria funcionar como um garantidor das “regras do jogo democrático” e do projeto constitucional, passou a atuar fora dos limites impostos pela Constituição. Cada vez mais juízes, desembargadores e ministros das cortes superiores ignoram os limites externos à sua atuação (Constituição, leis, doutrina, ética, jurisprudência das Cortes de Direitos Humanos etc.) para produzir decisões baseadas no que eles imaginam ser o mais correto. Em um típico funcionamento psicótico, substituem a lei simbólica pela lei imaginária, as normas democráticas por suas certezas, ainda que delirantes.

                 Diante deste quadro, o pensamento reflexivo e a inteligência tornam-se obstáculos à manutenção desse estado de coisas. No ambiente capitalista, radicalizado na fase neoliberal, a contradição “que consiste na estupidez da inteligência é uma contradição necessária. Pois a ratio burguesa tem que pretender a universalidade e, ao mesmo tempo, desenvolver-se no sentido de restringi-la”.[6] Uma pessoa deve ser inteligente, na medida em que sirva aos interesses dos detentores do poder econômico, mas esses mesmos interesses vão levar essa mesma pessoa a portar-se como estúpida, sempre que necessário ao processo de acumulação do capital. Pode-se, inclusive, admitir a hipótese de que o fenômeno da idiossubjetivação[7] reorganiza a personalidade do indivíduo, alterando a relação com o conhecimento, com o tempo, com a identidade, com a cultura, com o projeto da modernidade e com o valor “justiça”.

                 Esse “abrir mão da razão”, o “acelerar as coisas” ou o “deixar-se enganar sem resistência” parecem funcionar como mecanismos de evasão, ou seja, como recursos para evitar a solidão, a impotência, a angústia e as dificuldades impostas por causas socioeconômicas ou mesmo psicológicas: isso vale tanto para o cidadão comum como para os atores jurídicos. Essa espécie de fuga, cada vez mais frequente, leva tanto à saída autoritária (recorrer a um terceiro ou a um grupo que pareça capaz de trazer a segurança e a tranquilidade desejada à custa da liberdade) quanto à saída conformista, com a supressão dos pensamentos crítico e reflexivo (visto como um fator capaz de criar ainda mais dificuldades à vida do indivíduo).[8] Instalam-se quadros mentais de subserviência acrítica, de comodismo crônico e, em muitos casos, paranoicos, que independem do pensamento porque fundados em certezas, ainda que delirantes.

                 Mas, não é só. Vive-se um momento em que a crença no uso da força para resolver os mais variados problemas sociais é correlato ao anti-intelectualismo. As pessoas não querem mais estudar, preferem outras tecnologias a dos livros. Livros de direito, então, parecem peças de museu, substituídos por apostilas, que apostam na hiper simplificação de questões complexas ou consultas à “inteligência” artificial. O poder digital e as opções do programador que cria o algoritmo parecem dar conta de substituir o papel da doutrina e dos doutrinadores. Os poucos manuais que ainda fazem algum sucesso, o que depende do carisma do autor, revelam tanto a adesão à simplificação excessiva da realidade como uma tendência a renunciar aos objetivos da doutrina jurídica (explicar, criticar, dar forma e direcionar a interpretação e aplicação do direito) para se contentar em reproduzir acriticamente as decisões dos tribunais que, com frequência são produzidas a partir de cálculos de interesses políticos e econômicos em detrimento do direito.

                 Então, por que um livro de processo penal? Por que um livro analógico em meio ao domínio do digital? Por que um livro, que é um objeto mais próximo de Newton do que da física quântica? A resposta fácil é: os autores sentiram a necessidade de escrever. Escrever um livro é, antes de tudo, uma oportunidade de refinar e elaborar o pensamento, que sempre nasce caótico. Esse livro foi escrito porque os autores têm dúvidas e a existência de dúvidas é a condição de possibilidade do pensamento. Mas, ao refletir sobre o processo penal, percebe-se rapidamente que algo precisa mudar: há muito arbítrio e sistemas de opressão em meio ao exercício do poder penal. Basta não fechar os olhos ao racismo, ao sexismo, à homofobia e, principalmente, à violência estatal, que historicamente serviu à manutenção do sistema de produção e opressão capitalista.

                 Tem-se, então, um livro que é um exercício de reflexão, mas que pretende ser também uma tecnologia voltada à construção de outro mundo possível. Trata-se, portanto, de uma obra que pretende se inserir no campo do pensamento crítico, ou seja, da produção de um saber que ajude cada leitor a ser capaz de formular diagnósticos adequados da realidade e direcioná-los em um sentido emancipatório. Mas, esse livro pretende que esse saber crítico se torne também uma prática. Adere-se à ideia de que o processo penal só faz sentido se for um saber-prático: não a tentativa de justificar teoricamente práticas que não estão fundadas em regras, princípios e valores democráticos, mas o saber que se torna prática para concretizar regras, princípios e valores democráticos relacionados ao projeto constitucional de vida digna para todas e todos.

                 Neste livro que o leitor tem em mãos, o esforço é de sempre constranger o que é apresentado como evidente e desfazer certezas sobre o poder penal. Parte-se de uma constatação óbvia: olhares e expectativas diferentes sobre o processo penal levam a diferentes práticas e discursos sobre o mesmo objeto. Contextos diferentes importam em novas necessidades e teorias. O mundo está em constante transformação. Mas, há coisas que não mudam: aumentar o poder penal é uma opção política que sempre vai significar um passo em direção ao autoritarismo; reduzir os controles e desconsiderar limites ao exercício do poder penal sempre vai tender ao autoritarismo.

                 A tentativa de contribuir para a criação de um processo penal adequado à realidade brasileira a partir da percepção de que a história é feita de rupturas e permanências, acelerações e freios, talvez seja um dos diferenciais desta obra. Sabe-se que o processo penal, percebido como um saber-prático, como todo produto histórico, está sujeito a transformações e contingências, mas, ao mesmo tempo, aposta-se que há algo perene: a necessidade de lutar por manter as conquistas civilizatórias que, hoje, são conhecidas por “direitos fundamentais”. Também não se deve desistir da ideia de democracia, entendida como a efetiva participação popular na tomada de decisões políticas, somada à necessidade de respeitar os direitos fundamentais para todas e todos.

                 É preciso, e desconfia-se que sempre será, resistir à tentação autoritária que aposta na ilimitação (“vale-tudo”) como forma mais fácil de realizar um capricho, produzir mudanças na sociedade ou colocar em prática um projeto político. O processo penal tem um papel importante a desempenhar na defesa dos limites democráticos ao exercício do poder, de qualquer poder. Então, a ideia de escrever um livro de processo penal comprometido com os limites democráticos ao exercício do poder penal pode não ser uma ideia boba.

                 A ideia, então, foi escrever sobre poder, democracia, limites, sistemas, regras, princípio e valores, liberdade, prisão, provas, sujeitos processuais, atos jurisdicionais em um texto que deixe o leitor desnudado: enriquecido, mas despido dos preconceitos que costumam dar a tônica dos comentários sobre o processo penal brasileiro, e constrangido diante do que é o Sistema Penal. A função de um bom livro de processo penal é ajudar na criação de uma cultura de respeito aos limites democráticos ao exercício do poder penal, mas também exercer aquilo que alguns chamam de “constrangimento epistemológico”: mostrar os equívocos e absurdos tanto de uma doutrina que abandonou a função de questionar e direcionar o exercício do poder e de práticas, comumente aceitas por atores jurídicos, que geram violência e sofrimento ilegais e desnecessários à parcela da população percebida como indesejável. Nesse movimento rumo ao desnudamento do leitor, que passa pelo reconhecimento de uma cultura autoritária (crença no uso da força, ódio ao conhecimento, medo da liberdade etc.), o ápice que se pretende ver alcançado é a consternação de se perceber como um indesejável em potencial. Se o Estado, condicionado pela racionalidade neoliberal, está a serviço dos detentores do poder econômico (os “super-ricos”), nós, os 99% da população mundial que não dispomos dos meios de produção, todos somos indesejáveis em potencial (pode-se, portanto, afirmar um devir-indesejável).

                 Para ajudar a ampliar os espaços de incidência do poder penal, não há necessidade de um livro de processo penal. A tradição autoritária e o estilo inquisitorial já são hegemônicos no Brasil. As teses punitivistas, que recorrem a manipulações discursivas (como, por exemplo, a ideia de que os “direitos humanos” servem para proteger “bandidos”), soam sedutoras em sociedades que tendem a apostar na violência em detrimento do conhecimento. Assim, o objetivo é atuar em sentido inverso, atuando efetivamente na transformação do sistema penal.

                 Sistema, por definição, é um conjunto de elementos independentes que interagem para atingir um objetivo comum. Para além das disputas entre as vantagens e as desvantagens do “sistema acusatório” e do “sistema inquisitivo”, ou do debate acalorado entre os elementos definidores do acusatório (“gestão das provas nas mãos das partes” ou “separação entre as funções de acusar, defender e julgar”), o certo é que opções políticas fazem com que o sistema processual penal amplie ou sirva à contenção do poder punitivo. Pode-se, ainda, afirmar que a coerência de um sistema é fornecida por um princípio reitor: no caso dos modelos democráticos, o princípio reitor é um mandamento direcionado à contenção do poder. Para ampliar o poder penal, como salta aos olhos, não há necessidade de coerência ou respeito aos valores democráticos.

                 Nesta obra, como se verá no segundo volume, apostamos no princípio da democraticidade, que limita a gestão da prova e, também, determina a separação entre as funções de acusar e julgar, como o mandamento nuclear do sistema penal e a diretriz interpretativa direcionada aos atores jurídicos. A democracia, hoje, deve ser entendida para além da efetiva participação popular na tomada das decisões políticas (democracia representativa e democracia direta), como um regime que necessita buscar a realização dos direitos e garantias fundamentais (democracia substancial). O princípio da democraticidade não é um simples modelo ou uma abstração, mas um verdadeiro princípio jurídico e, portanto, um comando normativo, que aponta para a democracia como uma forma de racionalizar o processo penal e deslegitimar o uso arbitrário e abusivo do poder. A democraticidade implica esquemas de organização e impõe procedimentos que oferecem aos cidadãos expectativas de liberdade, limites às ações dos agentes públicos e controle efetivo sobre o exercício do poder. A democraticidade também enuncia um processo de democratização do sistema penal: trata-se de um processo dinâmico-processual que direciona as ações no âmbito da justiça criminal na direção do respeito à dignidade da pessoa humana e da concretização de uma sociedade livre e justa no qual se dê a maximização dos direitos fundamentais e a concomitante redução da violência, inclusive da violência estatal. Percebe-se, pois, que a democraticidade supõe o acusatório (limitação da gestão das provas e separação entre as funções dos sujeitos processuais), mas o supera: é um princípio informador do Estado, mas também da sociedade, que deve levar à reformulação das práticas, das imagens e da relação das pessoas com o sistema penal.

                 Se é necessário mudar o sistema penal (as instituições, as teorias e as práticas dos sujeitos processuais), que permite a violação rotineira dos direitos e garantias fundamentais de pessoas selecionadas pelas agências estatais encarregadas da persecução penal, é preciso reconhecer que o novo não surge do nada. O novo, em regra, junta-se com o que já existe. Impõe-se, pois, conhecer a realidade processual penal (uma trama que une leis, dispositivos e o imaginário relacionado ao poder penal) para transformá-la através de rupturas e superações, mas também de contaminações e articulações. Nesse movimento, conceitos e categorias deverão ser abandonadas, outras ainda serão úteis. Assim, por exemplo, a era digital não elimina a necessidade da dimensão contraintuitiva do processo penal e nem da função contramajoritária necessária à redução do poder penal e da concretização dos direitos fundamentais.

                 Este livro também parte da premissa de que os imputados, as pessoas a quem se atribui a prática de delitos, são cidadãos e, portanto, sujeitos de direitos. Mas, não basta afirmar que o réu e o investigado são sujeitos de direitos. São “sujeitos de direitos”: a) o portador de direitos e garantias que reforçam as liberdades públicas; b) o titular de uma “autonomia” da vontade que o leva a contribuir à própria punição a partir de técnicas de psicopoder, típicas da hegemonia neoliberal. Assim, é importante, em um livro como este, definir, a partir do princípio da democraticidade, o que é sujeito processual, persecução penal, justiça negocial, ação penal, sistema processual etc.

                 Como o leitor deve ter percebido, esse livro não é um texto neutro. Não é possível um saber neutro: cada palavra escrita aqui mira no ideal democrático que, em matéria penal, identifica-se com a redução e o controle do poder. Toma-se aqui a sério o desejo de extinção da violência que se manifesta no sistema penal. O desejo deve mirar em algo mais: o “abandono da violência como forma de interação social e política”.[9] Enquanto isso não ocorre, o saber-prático processual penal deve ser construído a partir da relação entre o contexto e a necessidade de transformação da sociedade em direção emancipatória. O processo penal é uma disciplina complexa, mas deve ser coerente e dirigida à ampliação das liberdades e à redução do uso da força.

                 Um dos objetivos deste livro, portanto, é frisar a importância dos valores inerentes à jurisdição (dever-poder de declarar e/ou realizar a “justiça” em concreto) democrática: a liberdade e a verdade. A função jurisdicional é uma atividade estatal de natureza cognitiva e, portanto, é impossível pensá-la desassociada da busca da verdade. Também não seria possível justificar a necessidade da jurisdição penal, e de um juiz imparcial, se não fosse o compromisso do Estado de preservar a liberdade dos cidadãos. E há um método para se aproximar da verdade e, ao mesmo tempo, assegurar a liberdade contra o arbítrio e a opressão. Deve-se procurar, ao longo de um processo judicial, através da produção de provas, conhecer a verdade, reconstruir, na medida do possível, um fato histórico e assegurar que as liberdades individuais só serão afastadas em situações excepcionais. Registre-se, porém, que os atores jurídicos devam reconhecer tanto os limites humanos que impedem a descoberta da verdade (aqui entendida no seu sentido greco-romano, isto é., como correspondência/adequação entre o que está no mundo e o que é dito) quanto o fracasso das funções declaradas da prisão.

                 É preciso que os atores jurídicos compreendam que inexiste a possibilidade de se alcançar a propalada “verdade real” que tanto arbítrio justificou (torturas, provas ilícitas etc.) ao longo da história. Na busca pela verdade, muito mal foi (e ainda é) produzido. Mas também não se pode abandonar a garantia à justiça e à liberdade, que consiste na reprodução eticamente possível, em juízo, dos fatos que justificam o exercício do poder penal. O processo penal, que na democracia está comprometido com a redução dos espaços e das oportunidades de arbítrio, deve buscar, porém, em cada julgamento, a máxima aproximação com o valor “verdade” (alguns, por isso, dizem que a “verdade processual é aproximativa”) e o máximo respeito à liberdade alheia, respeitados os limites fáticos, legais e éticos.

                 No juízo penal, manifesta-se a relação entre saber (veritas) e poder (auctoritas), isso porque os julgamentos são construídos por uma mistura de conhecimento e decisão: quanto mais distantes do valor “verdade”, mais poder tendencialmente arbitrário se fará presente e mais arbitrária, e incontrastável, será a decisão. O abandono do valor verdade e a relativização do valor liberdade levam à substituição do conhecimento pelo decisionismo, da liberdade pela prisão, da comprovação de um fato pela reafirmação de uma hipótese sem base empírica, de decisões lastreadas em fatos por decisões baseadas em convicções, certezas (ainda que delirantes), desejos ou moralismos. Não há, portanto, verdadeiro processo de conhecimento sem o valor “verdade”; não há democracia sem o respeito ao valor “liberdade”.

                 Necessário, portanto, afastar do âmbito processual penal as teorias contaminadas pelo medo da verdade (verofobia) e pelo medo da liberdade. Se, por exemplo, a noção de verdade for repudiada, a validade de um argumento ou mesmo de uma conclusão passará a depender da crença de cada um, o que inviabiliza não só o debate racional como também a existência de um espaço público democrático (em que se busquem consensos mínimos) e laico (no qual a fé não condicione a política ou a aplicação do direito). Sem o valor “verdade” não há a função de conhecimento e, portanto, desaparece o sujeito cognitivo. Sem o valor liberdade abrem-se as portas para a opressão e, então, desaparece o sujeito democrático. A própria metodologia, ligada à epistemologia, cujo objetivo é estabelecer as condições de verdade dos enunciados, torna-se sem sentido. As regras processuais penais de garantia, relacionadas tanto com o valor “verdade” quanto com o valor “democracia”, também se tornam dispensáveis. Em resumo, a verofobia decreta o fim do próprio empreendimento epistemológico, bem como das garantias processuais relacionadas com o valor “verdade”; o medo da liberdade, por sua vez, está relacionado com o crescimento do autoritarismo e com o abandono das garantias processuais relacionadas com o valor “liberdade”. Uma justiça distanciada da verdade e da liberdade é um espaço vazio a ser preenchido pelo arbítrio e pela opressão; é uma justiça tendencialmente autoritária e menos sujeita a controles.

                 O método da obra, portanto, vai envolver a análise crítica do contexto em que estamos lançados, considerando as contradições internas ao exercício do poder penal, bem como a relação entre os elementos, conceitos, instituições e teorias que tratam a possibilidade de pessoas colocarem outras pessoas em celas de prisão que se parecem com jaulas. Isso porque uma das principais tarefas do processo penal é a redução da violência estatal, ou seja, buscar-se-á, neste livro, construir marcos democráticos que podem ajudar tanto na disputa argumentativa das partes quanto na decisão fundamentada do juiz. Enfim, diante da arbitrariedade e do autoritarismo presentes no sistema de justiça criminal, o objetivo é ajudar na construção de novas formas de atuação das partes e de produção de decisões em matéria penal: ensinar a atuar, litigar e julgar em um ambiente processual informado pelos direitos fundamentais.

                 Neste livro, o primeiro volume trata da hermenêutica processual, dos discursos sobre o processo penal e dos mitos que precisam ser abandonados à compreensão e à prática processual penal voltada à eliminação do exercício ilegal ou desnecessário do poder penal. O segundo volume é dedicado aos sistemas processuais e aos conceitos fundamentais necessários ao saber-prático processual penal. Já o terceiro volume tem por objeto a persecução penal, tanto a fase de investigação preliminar como a persecução penal em juízo. O quarto e último volume aborda os demais procedimentos penais e os instrumentos voltados à liberdade.

                 Em um mundo que se caracteriza pela aceleração com que ocorrem as mudanças, cheio de promessas descumpridas, não bastam doutrinas ou ideologias. É preciso um esforço para orientar a vida e a história, tornando-as instrumentos da realização das promessas, e não uma sequência de atos ou de dias marcados pelo absurdo ou pela espera por um futuro que nunca se faz presente; para que gerem esperança, e não desesperança ou resignação; para que levem a uma prática transformadora, e não à passividade e ao egoísmo. Coerência e fidelidade diante da realidade: necessidade de uma prática emancipatória. Esperamos que esse livro ajude o leitor a se orientar.


[1] ADORNO, Theodor W. “O que significa elaborar o passado”. In: ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2020, p. 33.

[2] Nesse sentido, cf. HORKHEIMER, Max. Eclipse da razão. São Paulo: Unesp, 2015, p. 28.

[3] Ibid., p. 29.

[4] Ibid., p. 30.

[5] Ibid.

[6] ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p. 196.

[7] CASARA, Rubens. A construção do idiota: o processo de idiossubjetivação. Rio de Janeiro: Da Vinci Livros, 2024.

[8] Nesse sentido, cf. FROMM, Erich. El miedo a la libertad. Barcelona: Paidós, 2000, pp. 207-296.

[9] CARVALHO, Salo. “Considerações sobre as incongruências da Justiça Penal Consensual”. In: CARVALHO, Salo. Escritos de Direito e Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022, p. 263.


 
 
 

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